sábado, 6 de fevereiro de 2010

decisão

Devagarzinho, desenrolou-se dos braços fortes que lhe abraçavam enquanto dormia. Não queria acordar o homem deitado ao seu lado. Fazia tempo que não conseguia pegar novamente no sono, e seu corpo estava ficando dolorido de ficar na mesma posição. Descobriu-se dos cobertores e se sentou na cama sentindo as molas do colchão rangerem sob seus movimentos. A friagem atravessava o grosso tapete. Tateou o chão à procura das pantufas, seu acolchoado confortou-lhe os pés. Demorou um pouquinho até que a maciez esquentasse e transformasse o conforto em aconchego. Levantou-se e as molas rangeram mais uma vez. Só desejou que isso não acordasse seu companheiro, era a última coisa que queria. Durante o tempo em que estivera esperando os pés ficarem quentes dentro das pantufas, espreguiçara-se. Seus olhos já se haviam acostumado à escuridão, então não houve necessidade de acender qualquer abajur que fosse para encontrar o robe, que vestiu a fim de proteger suas costas e peito nus. Caminhou pelo quarto, tentando pôr em ordem tudo aquilo que lhe estivera martelando a cabeça enquanto não conseguia dormir. Eram tantas as coisas. Julgou-se incapaz, pela primeira vez em sua juventude, de não conseguir achar uma alternativa para seus problemas. Nem um subterfúgio que fosse. Nunca tomara nenhuma atitude radical, mas sempre dera um jeitinho de fazer as coisas se arranjarem, de um jeito ou de outro.
O homem adormecido na cama se mexeu. Teria notado sua ausência? Não. Ele dormia feito pedra, ainda mais depois do que haviam feito quando chegaram ali. Era um homem maduro e ainda viril, mas todos os seus clientes costumavam dormir bastante depois de se encontrarem. Aproximou-se da cama, pertinho do rosto do homem. Havia algumas rugas nos cantos de seus olhos cerrados. Os cabelos grisalhos lhe davam certo charme. Era um homem bonito. Gentil e bastante devotado. Não entendia por que ele nunca se casara, sendo tão bom. Não entendia também por que lhe havia escolhido para passar as noites. Noites, no começo. Logo depois vieram os jantares, as tardes... Os almoços, e o dia inteiro, noite adentro. Sempre havia um café da manhã depois. Às vezes, um final de semana. Ou uma semana de férias. Ele sabia que nunca poderia lhe ter de verdade, só por um tempo, a certo custo... Custo que ele estava sempre disposto a pagar, até mais que o combinado. Como podia o homem dispensar tanta coisa por sua causa? Tinha mesmo muito que agradecer a ele, pois era o único que lhe conseguia fazer feliz, quando todas as outras pessoas que amava lhe haviam dado as costas, sem nunca nem lhe terem estendido a mão.
Afastou-se dele, depois de puxar os cobertores até seu peito. Não queria que ficasse doente. Só conseguiria dormir depois que pensasse o bastante sobre o que lhe atormentava. Bom, o homem era uma dessas coisas. Por mais que estivessem juntos em um final de semana ou outro, sempre havia algum outro cliente na semana. Nenhum se comparava àquele deitado ali no quarto, mas eram pessoas necessárias para seu sustento financeiro, emocional e físico. Eram únicos aqueles que lhe proporcionavam segurança, ou lhe apoiavam nas escolhas. Com alguns conversava, apenas. Pagavam por isso. Havia aquele – em particular – que lhe satisfazia melhor que todos os outros. Tudo bem que seu trabalho era dar prazer, mas era muito gostoso conseguir receber prazer em troca. Desse modo, não havia aquela mecânica de sempre. O casado sempre lhe procurava, ora para conversar, ora para descarregar sexualmente toda a frustração sexual que enfrentava em casa. Sempre o ajudava, aconselhando para que tentasse manter sua família unida, pois esse era seu maior bem. De um modo geral, vivia bem com todos os seus clientes, e sabia conciliá-los bem, mesmo sendo o adormecido o que mais lhe procurava. Sua relação havia se tornado algo mais intenso que simplesmente ‘programa’. Havia ali certo companheirismo quando o homem lhe levava para passear, passar a noite em sua casa ou apenas ir ao café da esquina conversar sobre a vida. As ligações nos celulares eram frequentes. Às vezes, precisava desligar o celular quando estava com outro cliente, para que não atrapalhasse. O homem, certamente, percebia e não insistia mais. Entendia que só lhe podia ter quando pagava sua companhia, suas palavras e seu corpo. Nunca havia lhe cobrado nada ou chamado atenção para seu comportamento. Queria apenas seu bem. Queria tanto que um dia lhe propôs que fosse morar com ele. Será que ele não entendia que seu lugar era na vida? Não era a pessoa certa para ele. Não poderia nunca satisfazer as necessidades daquele homem, a não ser quando combinado. Quando combinado.
Havia também outra coisa que lhe apertava o coração sob o peito agora nu que o robe deixara descoberto por estar frouxo o nó na cintura. Sua família. Família? Não deixavam de sê-lo, apesar de não mais manterem contato durante bem uns cinco anos. Não aceitavam seu modo de ganhar a vida. Bem que tentara esconder durante certo tempo, mas sempre lhe perguntavam a origem do dinheiro com o qual contribuía em casa. Sempre mentia. Mas os pais não aceitam os filhos do modo que são? Resolveu, pois, contar a verdade. Nem sempre os pais aceitam os filhos do modo que são. Disseram que aquilo era coisa que gente decente não fazia. Fizeram com que arrumasse suas malas e fosse procurar um lugar para morar, porque gente sem-vergonha não morava debaixo daquele teto pudico. Morou um tempo na casa de amigos e teve sua vida atormentada pelos familiares que lhe ligavam no celular, exigindo satisfações ou dizendo estarem envergonhados. Depois de um tempo conseguiu um apartamento, com o dinheiro que tinha guardado e com o que ganhou. Todos os seus clientes lhe ajudaram bastante, e teriam ajudado mais, se tivesse dado abertura. Houve um que lhe convidasse para morar com ele. Mas não. Não podia estragar sua relação com eles. Eram clientes. Clientes apenas.
Olhou-se no grande e largo espelho que havia na parede defronte a cama. Seus cabelos estavam amassados no lado esquerdo, e bagunçados depois da farra. Isso lhe provocou um certo riso rouco. Tinha de arranjar um motivo para rir. Assim os problemas ficavam mais leves, de certo modo. Abriu o robe e esquadrinhou-se. Suas pernas bem torneadas tinham coxas duras e macias. Uma tatuagem que começava perto da costura da roupa de baixo e ia além dela provocava quem a olhasse, provocava os clientes, que queriam sempre saber até onde ela continuava, e o que havia perto dela. Era um trunfo. A cintura era onde eles mais gostavam de pegar, sempre num abraço protetor ou numa pegada mais caliente. O peito nu e macio parecia ser onde se encontrava toda sua energia. Os cabelos que lhe caíam nos ombros eram sedosos, cheirosos. Além de resistentes, pois adoravam puxá-lo. Orgulhava-se, seu instrumento de trabalho estava em perfeitas condições, dali irradiava o furor que encantava seus homens. Os clientes gostavam. Gostavam do seu corpo. Até quando, porém, ele duraria? Não para sempre. Nada durava para sempre. Aprendera isso com sua a vida. Vida. Que vida levaria depois que ‘tudo caísse’? Teria meios de se arranjar depois que seus clientes enjoassem do seu corpo decadente e fossem procurar alguém mais enxuto? Precisava se garantir. Morar com cliente era uma hipótese fora de cogitação. Tinha dinheiro guardado. Seria o suficiente?
Ocorreu-lhe que depois que essa sua vida acabasse, poderia tentar uma reaproximação com sua família. Não seria tarde, seria? Dali uns dez anos? Precisava deles. Sempre precisara. Seus pais já deviam estar quase de idade, já não eram novos quando nasceu. Não queria que algum deles partisse sem que pudesse se despedir. Carregar esse sentimento seria mais insuportável que permanecer sem lhes falar. Esperar dez anos era muita coisa. Gostaria mesmo era de falar logo com eles. Ocorreu-lhe a dúvida de que talvez eles continuassem irredutíveis em sua posição. Ou teria o tempo amolecido e aberto seus corações? Não achou isso possível. Era uma família muito tradicional. Se quisesse, teria era de largar essa vida, e ir com a cara limpa, cheia de coragem. Largar essa vida? Conseguiria? Ora, não haveria de fazer isso um dia? Ainda era jovem, tinha tempo para seguir um novo rumo. Pior seria se resolvesse tentar uma vida nova quando já não lhe sobrasse juventude, beleza ou inteligência, afinal, ainda não havia investido em si. Ainda haveria tempo para tudo isso, se desistisse dessa vida agora. Mas e o homem? E seus clientes? Eles que se arranjassem. Já havia vivido muito tempo em função deles. Mundo afora havia mulheres para cada um deles e, em outra hipótese, outras pessoas da vida. Precisava era pensar na sua vez, que podia ser agora, dali a dez anos ou nunca mais. Agora pouca coisa era certa, porém mais provável. Dali a dez anos tudo era incerto. Nunca mais era muito tempo. Teria de ser agora. Amarrou novamente o robe à cintura, deu uma chacoalhada nos cabelos e foi até o guarda-roupa do quarto. Sua malinha estava desfeita, com todas suas roupas nos cabides e nas gavetas. Primeiro, vestiu-se bem para o frio que estava fazendo naquele mês de junho. Depois, pegou as roupas e foi guardando tudo na malinha. No final, ainda havia espaço dentro dela, que deveria ser preenchido pela roupa que estava para lavar e passar. Elas que ficassem para trás. Seria uma vida nova, com roupas novas. Só pegara aquelas na malinha, pois não podia ficar sem se vestir. Assim que chegasse em casa, faria uma seleção com todas, dando as que sobrassem. Entregaria as chaves para o dono do apartamento. Alugaria outro, não tinha esperanças de tão cedo voltar a morar na casa de seus pais. Pegou o celular e o colocou da mesa-de-cabeceira. Não o levaria. Vida nova, celular novo. Nenhum cliente poderia saber do seu paradeiro. O dinheiro que o homem lhe havia dado pelo final de semana estava no bolso do jeans que usava. Colocou-o na mesa-de-cabeceira também. Poderia se virar com o que tinha, e não queria parecer estar aplicando golpe algum. Com o lápis-de-olho em sua bolsa, foi até o espelho e escreveu Adeus. Você foi bastante importante para mim. Não me procure, pois não me encontrará. Você não tem culpa nenhuma, mas agora acabou. Preciso viver minha vida. Quando estava para passar pela porta do quarto, olhou para trás. Ele ainda dormia, o homem que poderia ter sido o da sua vida. Poderia. Não podia ficar mais com possibilidades. Desceu as escadas e saiu da casa. Era um novo dia, com a aurora que chegava. Alguns carros passavam pela estrada enlameada.
Pediu carona para um e combinaram o destino. Foi viver sua vida.