segunda-feira, 23 de novembro de 2009

imaculado

O balanço do parquinho rangia de velho, sua ferrugem se mesclava com o marrom terroso do chão, contribuindo junto com o céu plúmbeo para deixar o dia já escuro ainda mais encardido. Não havia viva alma que pudesse notar o menino de cabelos negros e asseados que seguia em direção àquele parquinho decadente, tomando cuidado para que suas roupas imaculadamente limpas não fossem sujas pelo óleo vazado dos carros, nem pela lama da rua ou pelas goteiras das árvores de copas encharcadas.
Teria o parquinho só para si, principalmente o balanço, o que já era grande coisa, considerando que em dias de bom tempo já era uma grande peleja adentrar o parquinho, que diria conseguir apropriar-se de um dos brinquedos por um momento que fosse. Permitiu-se correr até o balanço, mesmo que isso significasse melar seus sapatos de lama. Escolhendo o do meio, notou que no assento havia água, mas não considerou isso um problema e apenas a limpou com as mãos, deixando ainda umas gotas esparramadas (secou-as ao se sentar nele). Suas mãos, notou também, sujaram-se com a ferrugem das correntes, mas assim que começou a balançar e experimentar aquela brisa morta no rosto, deliciando-se com o vai-vem à medida em que ia ganhando altura, pensou que aquelas sensações valiam a lama nos sapatos, o bumbum molhado e as mãos sujas. Com certeza, sua mãe entenderia que voltasse para casa mais sujo do que quando saíra, afinal, era normal que garotos se sujassem mais do que deviam.
O balanço fazia um rangido quando ia para frente (réc), e outro quando ia para trás (roic). Isso o fez se lembrar de uma cantiga, que uma vez ouvira algures, e com certa dificuldade tentou assoviá-la da melhor maneira que pôde. Não com muito sucesso, mas não era o pior som do mundo, e o único que se fazia ouvir naquela desolação de cidadezinha. Até ouvir um certo chape-chape atrás de si, seguido de uma vozearia. Não se importava com o que fosse, contanto que ali pudesse permanecer, assoviando e balançando.
- Olha lá, o bambi quer voar!
Ah, são aqueles moleques, pensou.
- E ‘tá assobiando feito um canarinho, haha!
Foi deixando o balanço diminuir seu ritmo. Boa coisa não sairia dali, e sua vontade era de voltar logo para casa. Porém, se o fizesse, seria tomado por covarde (não que nunca tivesse sido). Melhor ficar? Logo os moleques alcançaram o balanço e o cercaram. Não mais havia vai-vem algum, e o menino ficou a olhá-los bem. Eram seis. Dois ou três anos mais velhos, pelo menos dois palmos mais altos, rostos encardidos e cabelos ensebados. Sem falar do quase careca, cujas roupas estavam sujas e rotas nas barras e mangas. Reparou que uns três tinham paus nas mãos. Não havia nada que lhes recomendasse muito na opinião do menino, tampouco havia motivo para andarem daquele jeito, visto que tinham família.
- O que faz aqui, menino? – perguntou o quase careca, o chefe do bando.
- Como se dissesse respeito a você... – respondeu o menino, baixando a cabeça.
- Todo atrevidinho, hoje – continuou o quase careca. – Tu sabe que deve controlar a fuça, pra conservar os dentes.
- Ele não deve saber o que a gente fez com o da rua de baixo – zombou um dos que tinha um pedaço de pau na mão –, vai ficar um tempão com a boca fodida!
- Tua mãe que te arrumou assim, é? Te penteou e vestiu igual uma menina?
- Não foi ela – respondeu de cara amarrada.
- Ah, foi tu mesmo, né?  Quis ficar bonito, menino?
- Acho que vocês deveriam fazer o mesmo. Quem sabe assim as garotas podiam se interessar pelo que há debaixo desses trapos que vocês usam. – despejou, num momento de coragem descontrolada.
- As garotas só olham pra ti porque tu parece uma bonec...
- Tu acha mesmo que as garotas não olham pra gente? – interrompeu o quase careca. – Sabe que tua irmã ficou esfregando o rabo no meu pau, igual uma puta na festa da igreja? – disse, pegando em suas partes e arrancando urros dos comparsas.
- Minha irmã não é nada disso! E ela não faria uma coisa dessas, ainda mais com você! Seu maloqueiro... – sua voz saíra fina demais para mostrar valentia.
- Olha lá a bichinha toda nervosa defendendo a puta da irmã! – disse um fedido de cabelos louros.
- Tu é viado, moleque? Hein? – o quase careca adiantou-se pro menino, olhando-o bem nos olhos, dando-lhe um baita empurrão no ombro esquerdo. – Diz logo! – isso o fez corar de vergonha, e abaixou a cabeça.
- Quem sabe ele não bate uma pra gente! – berrou o louro fedido lá de trás. – Ele é bonitinho, pode ser nossa putinha! – enquanto eles zurravam, o menino se apavorava.
- Mas ele tem que responder minha pergunta – disse o quase careca, que agora segurava o menino com as duas mãos em seus ombros, exibindo um sorriso malicioso no rosto magro detentor de algumas cicatrizes. – Tu é viado, não é? Pode dizer... – não saía voz da garganta do menino, e ele já começara a empalidecer.
- Cara, ‘tá na cara que ele é! – os moleques trocaram olhares de assentimento, concordando no que iam fazer. – Duvido que ele não esteja querendo! – todos eles então foram fechando um círculo intimista em volta do menino e do quase careca.
- ‘Tá certo... – disse o quase careca. – Tu vai adorar o que eu tenho aqui pra ti – continuou, empurrando-o para o assento do balanço. – Primeiro tu senta aí – abriu o zíper da calça –, e agora vamo’ que já ‘tô de pau duro.
O menino não podia deixar-se submeter àquilo. À sua volta os moleques estavam todos reunidos, esperando pela hora do gozo, sinistros. Sendo todos mais velhos e mais altos, além de mais fortes, não havia como enfrentá-los no braço. Quando o quase careca foi se adiantando a ele com o pênis nas mãos, ordenando-lhe que o manuseasse, o menino realmente entendeu o que queriam dele, e se apavorou ainda mais. Aproveitou-se do fato de estarem urrando feito bicho e o quase careca estar numa espécie de jubileu com os amigos, tomou impulso no balanço e, quando ele chegou mais perto, meteu-lhe um chute no pênis que lhe vinha à frente. Nada de força, mas tudo de impulso; o que fez o antagonista cambalear para trás praguejando de dor, fazendo seus comparsas acudirem-no, quebrando assim o círculo que fazia às vezes de muralha. Sem titubear, lançou-se do balanço e se desembestou a correr, pensando em voltar para casa, acreditando estar com vantagem. Pode até tê-la tido, mas dois moleques logo estavam no seu encalço, nada dispostos a deixá-lo voltar para casa. Perseguiam-no de modo a fazê-lo entrar no bosque que circundava a cidade.
Arriscou uma olhadela para trás somente para aumentar seu desespero. Todos o seguiam agora, e do quase careca emanava um furor sem par. O chão do bosque estava ainda mais escorregadio que a lama da cidade, mas pouco se importava com obstáculos, tamanha era sua vontade de se ver seguro. Enquanto se embrenhava por uns arbustos baixos a fim de se esconder, jurou ter visto uma senhora de cabelos brancos e vestido cor-de-rosa. Passou por eles para alcançá-la, pois pensava que talvez ela o ajudasse, se visse seu desespero, mas foi só o tempo de se desembrenhar dali para volver os olhos na direção que a tinha visto, e ela sumira. Mesmo assim, continuou correndo (uma vez que havia dobrado a rota que seus perseguidores poderiam julgar reta), até chegar a uma pedreira que acabava num rio. Parou ali, agachou-se entre as pedras e esperou, rezando para que a falta de ação e barulho por sua parte acabasse por desanimar os moleques ou lhes dar a falsa ideia de que conseguira realmente fugir deles.

- Achei! Achei!
Ah, não. Era um moleque de pele clara e cabelos cor de palha, com o louro fedido, bem acima da pedreira. Dali a pouco, havia dois em cada margem, e alguns a desciam em sua direção. Então, olhou para frente e viu, numa pontezinha que cruzava o rio, a senhora que vira anteriormente. Os moleques pareciam não se ter dado conta dela, pois ela não os intimidava nem um pouco. Ele viu que a única maneira de chegar até ela seria pelo rio, estando as margens sitiadas. Foi então descendo pela pedreira e fez o que mais sensato lhe pareceu para tentar salvar sua vida: atirou-se no rio.
Enquanto se sentia trespassado pela gélida correnteza e tentava nadar na superfície, ouvia os gritos dos moleques, mais os urros do quase careca: cata ele, cata ele!. Afundou mais uma vez, engolindo uma quantidade de água fabulosa. Lembrou-se de que nunca fora um bom nadador, e chegou a se escutar pedindo socorro. Afundando cada vez mais, engolindo muita água, sentiu um frio medonho tocar-lhe a alma, vendo a luz do dia lá longe na superfície...
Até não mais sentir a água a lhe encher os pulmões. O frio acabara, ele se sentia leve como pluma, além de limpo. Ao sentir uma frescura, percebeu que chegara à superfície. Uma mão branca que vinha de cima indicava que a senhora de cabelos brancos, tão parecida com sua avó, lhe estendia a mão para que subisse na ponte. Lá se sentou, confuso. Não contava ver o corpo de um menino de 12 anos boiando no rio, ondulando na correnteza, nem em ouvir os gritos dos moleques apavorados, que apontavam para o corpo:
- Ele morreu!
- Putz, olha o que tu fez, cara!
- Eu? Eu não fiz nada! O viadinho que se jogou no rio!
- Cala a boca, seus filho’ da puta! – disse o quase careca. – Agora a gente volta pra casa e deixa isso pra lá! Faz de conta que não sabemo’ de nada!
- Boa!
- Sujou, mano! Vamo’ logo embora!
Ao deixarem o lugar, a confusão foi se desfazendo para o menino.
- Então... – quase gaguejava. – Aquele sou eu? Eu morri?
A senhora fez que sim.
- Mas por quê?
- Isso eu não posso responder.
- Mas e eles? A culpa é deles!
- Não me cabe determinar, meu rapaz.
- O que acontece agora? E minha mãe?
- Ela saberá. Não se preocupe.
- Aonde vou?
- Eu mesma não sei. Só vou te levar até um pedaço.
- Me promete uma coisa? Promete que vai ser bem má na hora deles?
- Não creio que isso dependa de mim.
- Foram tão maus comigo...
- Acho que posso assustá-los – respondeu, dúbia.
- Sério que pode?
- Talvez.
- Olhando bem, a senhora não se parece tanto com minha avó. Só lembra – disse, fitando-a. – Por quê?
- Pra que você não tivesse medo – e quase sorriu. – Agora vamos?
- Posso te pegar a mão? – pediu. – Tenho medo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

o templo da colina

O Templo da Colina se localizava na colina mais alta do vale mais elevado da região. O automóvel avançava com dificuldade pelos caminhos nevoentos, molhados e tortuosos que levavam até ele. Muitas pessoas costumavam enfrentavam a cansativa e aflitiva viagem até lá a fim de fazer suas promessas. Todos os quatro dentro do carro haviam caído da cama antes do nascer do sol, mas três deles estavam preocupados demais para uma tirada de pestana sequer. Apenas Salomé dormia, encostada ao ombro de Miguel. Por seu estado muito fragilizado de saúde e mente, não aguentara acordada a viagem. O pai somava a cautela com a estrada às preocupações que já lhe pesavam tanto. Não falava, nem com a mãe, que mordia o nó do dedo indicador direito, aflita. Uma ida a um templo pagão não tem cabimento, pensava ela, mas era a vontade da filha, devia ser respeitada. Miguel, não menos preocupado que seu pai e sua mãe, tentava estalar os dedos há muito e muitas vezes estalados, olhava para a direita, ao leste, onde o preguiçoso sol começava sua tentativa de se levantar de seu leito.
Com um sorriso gentil, Miguel começou a acordar a irmã.
— É, chegamos — anunciou o pai.
Ela despertou.
— Vamos, querida, arrume-se — disse a mãe.
O sol mal nascera; uma névoa densa e branca pairava pelo lugar, delimitando o campo de visão das pessoas. Miguel ajudou Salomé a sair do carro: a falta de calor e o sereno mantinham tudo bem úmido e escorregadio, e a doença a deixara bastante debilitada. Precisava sempre de apoio e andava devagar, a passos lentos e incertos.
Passaram pelo arco de pedra encardida e pelas grades espiraladas, que marcava a entrada; e foi a caminho da fonte que vislumbraram pela primeira vez o Templo da Colina. Este erguia-se como um refúgio em meio à névoa fantasmagórica. Miguel ia com Salomé à frente, amparando-a com o braço direito; a mãe e o pai seguiam atrás, incomodados.
A fonte era funda, alta e larga. O musgo que a cobria, pegajoso. Sua água exalava um bálsamo confortador, que os envolvia em aconchego, enchia-lhe os corações de esperança e os encorajava. O pai e a mãe fitaram o casarão adiante, admirados e cautelosos.
— Vamos pegar os cálices — disse a Mãe, de má vontade.
Salomé sentia o casarão devorador, atraindo-a. Virou-se para Miguel, procurando mais segurança nos braços dele e no calor de seu corpo. O irmão era seu refúgio.
A mãe e o pai voltaram com quatro cálices nas mãos. Distribuíram-nos, encheram-nos na água da misteriosa fonte, seguindo, depois, para o Templo que, apesar do dia de frio e escuridão, estava maravilhosamente iluminado, com candelabros bruxuleantes à sua volta. Através de seus vitrais, via-se a luz dourada das velas. Ao cruzarem as portas de ferro, um sacerdote deu-lhes uma grossa vela num castiçal gasto. O esplendoroso interior do Templo era um enorme salão oval de piso empedrado, grossas colunas esculpidas, cujas bases eram altares pejados de velas e cálices, abóbadas de ogivas altas, trabalhadas, quase sem fim, e paredes queimadas com archotes flamejantes. Serpenteando pelas abóbadas, uma cobra fumacenta e negra espreitava.
Dirigiram-se até o altar onde ficava a escultura da deusa da cura na coluna: semblante calmo, corpo resistente; com a mão direita segurava um cálice e, com a esquerda, um bastão com uma serpente enroscada. Fitava-os com olhos de pedra, penetrando a alma do mais enfermo.
— Venha, Salomé — disse Miguel, adiantando-se para começarem a oferenda.
Ele explicou à irmã e aos pais como proceder. Terminado o ritual, o pai e a mãe lançaram um derradeiro olhar de menosprezo à deusa e se voltaram para ir embora. A fumaça negra vinha pelas abóbadas na direção de Salomé e Miguel, que se detiveram em frente ao altar. Ao invés do flautista hipnotizar a cobra, fora a cobra quem hipnotizara Salomé, que a fitava, petrificada; seu irmão não se dera conta até que ela disparou até a garota, atingindo-a no peito, fazendo-a cair. Miguel acudiu-a, pegou-a nos braços e tentou erguê-la, em vão. Ela havia desmoronado, para depois se reerguer em outro ser: maligno e forte. Abriu os olhos rubros como brasa, mirando os de Miguel. Empurrou-o com força incomum e levantou-se rapidamente. Um ser ereto, forte e ameaçador, cujos cabelos pareciam cobras, os olhos, o inferno, a pele, mais alva do que neve, com maior potência incendiária, chegou mais perto de Miguel.
— Tu és fraco, frouxo — disse numa voz forte e opressora. — Omisso e covarde! Pecaminoso! O que diria sua família se soubesse o sentimento que nutre por irmã? Se soubessem das tantas noites em que você a desejou ardentemente? Acha que mesmo ela compreenderia você? Você fez a pior coisa que um irmão poderia fazer... Querer tomar a irmã!
O Templo todo assistia à cena. Estariam todos vendo o que viam? O rapaz cerrou os punhos, inspirou como se fosse mergulhar no mais profundo dos mares e investiu contra o ser, que conseguiu ser mais ágil, e agarrou um castiçal e brandiu-o contra Miguel. A vela foi arremessada em sua direção e a pequena chama e a parafina derretida queimaram-no. Aproveitando-se de sua distração, o ser avançou contra Miguel e cravou-lhe o castiçal no pescoço, lutando contra as cartilagens e seu forte corpo, que se debatia.
O rapaz gemeu e conseguiu desvencilhar-se do corpo possuído de Salomé. Sangrava terrivelmente. Do alto, o ser encarava-o fixamente, cheio de malícia, assistindo à sua agonia. De sua boca saíram as palavras não se deve brincar desse jeito com a própria irmã. Depois disso, gargalhou desdenhosamente.
— Olhe só para ti...
Miguel arquejava, e o corpo de Salomé desabou. Ela permaneceu caída por um tempo, mas logo recuperou os sentidos e, depois de uma breve desorientação, levantou os olhos para o irmão e viu sua desgraça. Miguel arrastou-se até ela e minha irmã saiu entre engasgos. Ela nunca entenderia o que acontecera. Seu irmão foi parando de arquejar e se acalmou, entregando-se à Inevitável. Os olhos permaneceram vidrados em Salomé, contendo toda a verdade que ela era incapaz de ler.
Um fenômeno como aquele nunca fora presenciado por alguém até aquele dia e deveria ser abafado. Os pais, com certeza, não fariam nada que pudesse prejudicar a filha, e tomaram o ocorrido como obra do demo, do sobrenatural. O filho teria de ser esquecido, juntamente com as acusações a seu respeito. A sombra que possuíra Salomé havia partido. Havia partido com eles. Na verdade, havia partido com ela. Isto passou despercebido.