segunda-feira, 21 de setembro de 2009

o templo da colina

O Templo da Colina se localizava na colina mais alta do vale mais elevado da região. O automóvel avançava com dificuldade pelos caminhos nevoentos, molhados e tortuosos que levavam até ele. Muitas pessoas costumavam enfrentavam a cansativa e aflitiva viagem até lá a fim de fazer suas promessas. Todos os quatro dentro do carro haviam caído da cama antes do nascer do sol, mas três deles estavam preocupados demais para uma tirada de pestana sequer. Apenas Salomé dormia, encostada ao ombro de Miguel. Por seu estado muito fragilizado de saúde e mente, não aguentara acordada a viagem. O pai somava a cautela com a estrada às preocupações que já lhe pesavam tanto. Não falava, nem com a mãe, que mordia o nó do dedo indicador direito, aflita. Uma ida a um templo pagão não tem cabimento, pensava ela, mas era a vontade da filha, devia ser respeitada. Miguel, não menos preocupado que seu pai e sua mãe, tentava estalar os dedos há muito e muitas vezes estalados, olhava para a direita, ao leste, onde o preguiçoso sol começava sua tentativa de se levantar de seu leito.
Com um sorriso gentil, Miguel começou a acordar a irmã.
— É, chegamos — anunciou o pai.
Ela despertou.
— Vamos, querida, arrume-se — disse a mãe.
O sol mal nascera; uma névoa densa e branca pairava pelo lugar, delimitando o campo de visão das pessoas. Miguel ajudou Salomé a sair do carro: a falta de calor e o sereno mantinham tudo bem úmido e escorregadio, e a doença a deixara bastante debilitada. Precisava sempre de apoio e andava devagar, a passos lentos e incertos.
Passaram pelo arco de pedra encardida e pelas grades espiraladas, que marcava a entrada; e foi a caminho da fonte que vislumbraram pela primeira vez o Templo da Colina. Este erguia-se como um refúgio em meio à névoa fantasmagórica. Miguel ia com Salomé à frente, amparando-a com o braço direito; a mãe e o pai seguiam atrás, incomodados.
A fonte era funda, alta e larga. O musgo que a cobria, pegajoso. Sua água exalava um bálsamo confortador, que os envolvia em aconchego, enchia-lhe os corações de esperança e os encorajava. O pai e a mãe fitaram o casarão adiante, admirados e cautelosos.
— Vamos pegar os cálices — disse a Mãe, de má vontade.
Salomé sentia o casarão devorador, atraindo-a. Virou-se para Miguel, procurando mais segurança nos braços dele e no calor de seu corpo. O irmão era seu refúgio.
A mãe e o pai voltaram com quatro cálices nas mãos. Distribuíram-nos, encheram-nos na água da misteriosa fonte, seguindo, depois, para o Templo que, apesar do dia de frio e escuridão, estava maravilhosamente iluminado, com candelabros bruxuleantes à sua volta. Através de seus vitrais, via-se a luz dourada das velas. Ao cruzarem as portas de ferro, um sacerdote deu-lhes uma grossa vela num castiçal gasto. O esplendoroso interior do Templo era um enorme salão oval de piso empedrado, grossas colunas esculpidas, cujas bases eram altares pejados de velas e cálices, abóbadas de ogivas altas, trabalhadas, quase sem fim, e paredes queimadas com archotes flamejantes. Serpenteando pelas abóbadas, uma cobra fumacenta e negra espreitava.
Dirigiram-se até o altar onde ficava a escultura da deusa da cura na coluna: semblante calmo, corpo resistente; com a mão direita segurava um cálice e, com a esquerda, um bastão com uma serpente enroscada. Fitava-os com olhos de pedra, penetrando a alma do mais enfermo.
— Venha, Salomé — disse Miguel, adiantando-se para começarem a oferenda.
Ele explicou à irmã e aos pais como proceder. Terminado o ritual, o pai e a mãe lançaram um derradeiro olhar de menosprezo à deusa e se voltaram para ir embora. A fumaça negra vinha pelas abóbadas na direção de Salomé e Miguel, que se detiveram em frente ao altar. Ao invés do flautista hipnotizar a cobra, fora a cobra quem hipnotizara Salomé, que a fitava, petrificada; seu irmão não se dera conta até que ela disparou até a garota, atingindo-a no peito, fazendo-a cair. Miguel acudiu-a, pegou-a nos braços e tentou erguê-la, em vão. Ela havia desmoronado, para depois se reerguer em outro ser: maligno e forte. Abriu os olhos rubros como brasa, mirando os de Miguel. Empurrou-o com força incomum e levantou-se rapidamente. Um ser ereto, forte e ameaçador, cujos cabelos pareciam cobras, os olhos, o inferno, a pele, mais alva do que neve, com maior potência incendiária, chegou mais perto de Miguel.
— Tu és fraco, frouxo — disse numa voz forte e opressora. — Omisso e covarde! Pecaminoso! O que diria sua família se soubesse o sentimento que nutre por irmã? Se soubessem das tantas noites em que você a desejou ardentemente? Acha que mesmo ela compreenderia você? Você fez a pior coisa que um irmão poderia fazer... Querer tomar a irmã!
O Templo todo assistia à cena. Estariam todos vendo o que viam? O rapaz cerrou os punhos, inspirou como se fosse mergulhar no mais profundo dos mares e investiu contra o ser, que conseguiu ser mais ágil, e agarrou um castiçal e brandiu-o contra Miguel. A vela foi arremessada em sua direção e a pequena chama e a parafina derretida queimaram-no. Aproveitando-se de sua distração, o ser avançou contra Miguel e cravou-lhe o castiçal no pescoço, lutando contra as cartilagens e seu forte corpo, que se debatia.
O rapaz gemeu e conseguiu desvencilhar-se do corpo possuído de Salomé. Sangrava terrivelmente. Do alto, o ser encarava-o fixamente, cheio de malícia, assistindo à sua agonia. De sua boca saíram as palavras não se deve brincar desse jeito com a própria irmã. Depois disso, gargalhou desdenhosamente.
— Olhe só para ti...
Miguel arquejava, e o corpo de Salomé desabou. Ela permaneceu caída por um tempo, mas logo recuperou os sentidos e, depois de uma breve desorientação, levantou os olhos para o irmão e viu sua desgraça. Miguel arrastou-se até ela e minha irmã saiu entre engasgos. Ela nunca entenderia o que acontecera. Seu irmão foi parando de arquejar e se acalmou, entregando-se à Inevitável. Os olhos permaneceram vidrados em Salomé, contendo toda a verdade que ela era incapaz de ler.
Um fenômeno como aquele nunca fora presenciado por alguém até aquele dia e deveria ser abafado. Os pais, com certeza, não fariam nada que pudesse prejudicar a filha, e tomaram o ocorrido como obra do demo, do sobrenatural. O filho teria de ser esquecido, juntamente com as acusações a seu respeito. A sombra que possuíra Salomé havia partido. Havia partido com eles. Na verdade, havia partido com ela. Isto passou despercebido.

3 comentários:

  1. Conto bem escrito. Para o meu gosto, o conto está bem melhor em relação à primeira versão, que pingava açúcar e transformava qualquer pessoa saudável em diabética. Você retirou o excesso de açúcar e substituiu-o por um pouco de sangue. Com isso, pude beber de seu texto sem fazer careta. Não desagradou meu paladar. Espero beber de seus outros contos e agradar-me deles.
    É preciso que eu o parabenize pelo conto, pois escrever é uma batalha e você conseguiu. :0)

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  2. Eu que sou toda 'mela-mela', gostei mais dessa versão do que da outra. Já que era pra ser um conto de 'terror', você o conseguiu e ficou realmente aterrorizante mas não ao ponto de sair correndo de medo e se esconder embaixo do edredom, ficou algo no 'ponto', se assim posso dizer.
    Gostei muito, meu escritor (sempre).
    Você tem futuro e acredito em você.
    Beeijos,(sua) Lelena.

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  3. Nossa Caio !, eu NUNCA iria imaginar que o irmão gostava da irmã, eu estava imaginando que ela tinha câncer, que queria experimentar algo novo pra tentar se curar, sei láa ~ Ótima narrativa !! - Mas afinal, por que os quatro estavam nesse templo? (: - De qualquer jeito, Parabéns :)

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