domingo, 23 de janeiro de 2011

dualidade

Logo depois do ocaso, a poluição da cidade fazia-se notar escura e densa, contrastante com o azul celestial que escurecia. Era uma vista interessante e o momento no qual ela se esquecia de qualquer desgraça que a afligisse. Apenas agradecia a deus por poder desfrutar pelo menos daquilo.
Esperava receber alguma coisa para comer das pessoas que saíam do supermercado. Mal se importava com o buraco que se havia formado em seu estômago, mas comer era uma questão de sobrevivência, não de opção, e somente por isso esperava. Tal era o desleixo que se tinha formado em si para si própria que questões como comer, beber ou se limpar já não lhe tomavam mais tanto tempo. Aproveitaria também e escolheria um canto escondido para passar a noite, onde estenderia seu papelão e dormiria com um olho aberto e outro fechado. Nas noites de calor, era matar ou morrer.
Quando a noite caiu intensa, escolheu um canto atrás da sebe que circundava o estacionamento do supermercado, estendeu seu papelão e se sentou. Não havia recebido nada para comer de ninguém, portanto haveria de se virar com os pedaços murchos de pão que tinha guardado. Aprendera a nunca esperar muito das pessoas. Sua bolsinha estava rasgada e imunda assim como sua calça roxa, junto com sua blusa de lã que, apesar do calor, estava desfiada e emaranhada como seus cabelos louros fedidos. Ali atrás da sebe desejava não ser notada por ninguém, para que sua presença demasiado perto dos carros não incomodasse seus donos.
- Mas cadê minha mamãe? – ouviu uma voz de criança. – Eu quero ela...
- Calma que ela já vem – respondeu uma voz de homem.
- E meu papai? – choramingou a menina. – Ele ia comprar doce pra mim...
- Mas o tio vai te dar doce – ouviu ela, numa voz segura. Aprumou-se para ver melhor aquilo que só estivera escutando.
- Então cadê o doce? – viu que a menininha usava um vestido cor-de-rosa cheio dos babadinhos brancos.
- Já vou te dar o doce – o homem segurava a menina pelo pulso e quase a arrastava, porque suas perninhas não o acompanhavam. – Vem vindo.
- Você está me machucando assim, tio – queixou-se, esfregando o pulso.
- Ah, querida... – disse, ajoelhando-se até ela, pegando seu pulso nas duas mãos e beijando-o. – Desculpa o tio?
- Desculpo.
- Agora o tio tem uma coisa pra você.
- É o doce?
- O doce vem depois. Agora é outra coisa.
- O que, tio?
- Você não pode contar isso pra ninguém... – começou, e ela notou que em sua voz parecia haver apreensão. – Promete que vai ser nosso segredo?
- Prometo, tio – sussurrou em resposta. Parecia adorar segredos. – Mas e o doce? – estava ansiosa.
- Te dou o doce depois – havia impaciência em suas palavras. – Prometo também.
O homem se levantou, olhou para os lados a fim de se certificar que não havia pessoas por perto e, não notando a mendiga atrás da sebe, julgou estar ali apenas com a menina e mais ninguém. Pegou em sua mãozinha e a conduziu para sua calça, perto do zíper, onde havia volume. A menina olhou para ele, interrogativa. Ele levou o dedo aos lábios num sinal de silêncio, depois lhe sorriu da maneira mais amigável que pôde, tentando esconder toda a sua malícia. Não podia assustá-la, não naquela hora em que tudo estava caminhando bem. Devagarzinho, foi abrindo o zíper. A mão dela ainda ali, agora sobre um volume ligeiramente maior e rijo. Quando tirou o tal volume para fora, ela deu um passinho para trás. Pareceu assustada. Largou mão dali.
- Que é isso, tio? – os olhos estavam arregalados e as sobrancelhas erguidas.
Ele não respondeu, mas repetiu o ato de levar o dedo aos lábios. Com a outra mão, começou a manusear seu membro, olhando para a menina. Ela pareceu quietar-se. Pegou novamente a mão dela e então fez com que ela o manuseasse, estimulando-o. O homem pareceu desligar-se de si mesmo, quando fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Saudava momentos como aquele. Esqueceu-se completamente de que poderia ser apanhado ali. Porém, tendo recobrado sua própria atenção, ele fez a menina parar e ergueu seu rostinho para ele.
- O tio tem uma coisa que é bem melhor que doce, sabia?
- Tem, tio? – arregalou os olhos. – Onde?
- Para ganhar isso, você tem que beijar o tio.
Ela, pensando se tratar de um beijo na bochecha, ergueu os braços para alcançar o rosto dele, mas foi impedida.
- Não. Você tem que beijar outro lugar.
Ela olhou para aquilo que estivera manuseando, dúbia.
- Isso mesmo.
- Mas, tio...
- Você não quer o doce?
- Quero.
- Então...
Pegou a menina por trás da cabeça e foi um pouco para frente. Estavam muito pertos um do outro. Com um empurrãozinho, a menina inclinou-se, e o estacionamento pareceu se iluminar. Havia um carro vindo. Rapidamente o homem fechou o zíper e puxou a menina para perto de uns latões de lixo. Não se cogitava a ideia de serem vistos. Poderiam ser pegos. Contudo, quando dariam pela falta da menina? Isso não lhe passou pela cabeça. Sentou-se no chão e pôs a menina no seu colo. Carinhou seus cabelos e face. Ela era lourinha e delicada.
- Agora o tio vai te pedir uma coisa.
- Que coisa?
- Fica quietinha.
Dizendo isso, tapou a boca da menina com uma mão e derrubou-a no chão. Com a outra mão, foi levantando seu vestido, alisando suas perninhas. Ela se debatia, tentava acertá-lo com seus braços pequeninos. Ele era muito forte, ela não tinha chance. Seria melhor que parasse de se mexer e o deixasse logo meter a mão entre suas pernas. Inconscientemente, foi isso o que fez. Que escolha tinha? A calça dele ficou apertada novamente. Lutava agora com a calcinha dela. Logo sentiria o prazer pelo qual ansiava. Logo. Afastou a calcinha para o lado e sentiu a maciez de sua pele.
Não por muito tempo. A mendiga saíra de trás da sebe e corria na direção deles. Ele não percebeu coisa alguma, tão louco de excitação que estava. Ela se jogou em cima dele e o fez atingir os latões de lixo, saindo de cima da menina. Mordeu a orelha dele que tirou sangue, e tentava socá-lo com a mão que não estava a apertar-lhe a garganta. Ele era tão grandalhão, e ela tão franzina, que conseguiu se levantar e batê-la contra a parede. Ela caiu, quase esmagada, mas conseguiu dizer para a menina:
- Corre, fia!
Ele não se importava mais com a menininha, deixou-a fugir. Já tivera sua oportunidade de gozo frustrada, e agora só queria era acabar com aquela que lhe estragara o momento. Deu-lhe uns quantos chutes na barriga que ela logo cuspiu sangue. Levantou-a pela gola da blusa e socou tanto sua cara encardida e sua boca estourada que três dentes saltaram dela. Ela já havia estado em tantas outras brigas que aguentou o tranco. Ele a jogou no chão e fez chover palavrões sobre ela, como se adiantassem de algo. Ela conseguiu agarrar sua perna e a mordeu. Mordeu tanto que sentiu os músculos cedendo às forças de seus dentes. O homem berrou. Berrou ainda mais quando ela subiu a mão feito uma aranha por suas pernas e esmigalhou o que tinha no meio.
À essa altura, a menininha já estava sendo procurada há muito por seus pais e pela equipe de segurança do supermercado. Tanto o fato dela ter sido encontrada quanto o alarde da luta entre o homem e a mendiga chamaram atenção da segurança. Realmente, logo se viu, enquanto continuavam a lutar o homem e a mendiga, grande contingente de seguranças a chegarem ao local, sem falar da menininha e seus pais. Surpreendidos, o homem e a mendiga foram separados e explicações foram pedidas. Depois, ouvida também a parte da família da menina, foi contatada a polícia.
O homem foi detido por  tentativa de estupro, agravada pela pedofilia contida no ato. As mídias veicularam o ocorrido, quase corriqueiro de forma terrível e infeliz. Também surpreendente, por ter como agente solucionador uma mendiga que aos olhos de alguns não teria porque se intrometer em um assunto desses mas, paradoxalmente, fizera-o, apesar do desprezo que sentia pelas coisas... Todo e qualquer humano surpreende se quiser, se deixar aflorar o que tem de melhor e pior de si.

(Conto a partir de uma reportagem.)