quarta-feira, 29 de junho de 2011

sepulcro

Show me forgiveness
For having lost faith in myself
And let my own interior up
To inferior forces
The shame is endless
But if soon starts forgiveness
The girl might live

(Björk, Show Me Forgiveness)

Suava. Seus cabelos estavam úmidos, colados nas têmporas. Sentia o sal que emanava de sua pele. Era um trabalho penoso, porém válido. Nos vincos de sua testa acumulavam-se gotas de suor, que lhe escorriam até os olhos, fazendo-os arder.
Aquelas paragens eram por excelência desertas, sem vivalma que lhe testemunhasse o ato inominável. Tampouco bichos havia, nem mesmo os vermes das entranhas da terra. Ao seu lado jazia, envolta em um saco preto de plástico, uma massa rígida. Quando julgou ter atingido certa profundidade, parou de escavar a terra. Havia ali diante de seus olhos a cova perfeita. Sem muito cuidado, empurrou a massa envolta no saco com os pés. Quando esta atingiu a borda da cova, deixou-se rolar até seu fundo, aconchegando-se ali. Não poderia tê-la ajeitado de forma melhor, parecia até uma criança dormindo segura em seu leito. A única diferença era que não tinha vida a massa rígida. Não mais.
Não quis olhar muito para a cova, para que não lhe ousassem aparecer os arrependimentos e lhe fosse dissuadida a ideia do sepultamento. Não se acobardara até ali, e seria ridículo que o fizesse agora. Logo estaria tudo terminado, e não devia titubear. Da mesma maneira que escavara a terra, pôs-se a encobri-la. Dessa vez, porém, o trabalho foi mais leve, e o suor de sua pele era apenas sal, seco.
Somente quando terminado o trabalho, mirou-o. Não havia como perceber que ali antes houvera uma cova. A terra úmida favorecera-o no sentido de não ter deixado nenhuma cicatriz na terra, tendo-a remexido. E também, ali não havia vegetação que não fossem esparsos e nus arbustos, sem relva.
Tomou seu rumo para casa, como se retornasse depois de uma jornada comum. Agiu pelo impulso e não controlou nenhum dos movimentos que faziam seus braços a andar. Como se há muito não se sentisse livre, seu corpo dava indícios de recém-adquirida ousadia para se movimentar involuntariamente. Não quis se toldar os próprios movimentos, e tampouco o fez com os pensamentos que lhe iam e vinham sem que tivesse tempo de assimilá-los. Tinha agora fronteiras diferentes, limites diferentes. Eram sensações novas. Por lhe parecerem indignas de observação, como se fossem perfeita e simplesmente transpassáveis, manteve inexplicável parcimônia em relação a elas, apesar da recente transgressão que se lhe impusera no espírito.
Pensou que estaria agora como se tivesse perdido uma parte de si, ou como se a tivesse decepado, e lhe ocorreu também que ainda poderia senti-la, da mesma maneira que alguém costuma sentir um membro recentemente amputado. Mas não. Não sentia falta daquilo que sepultara, provavelmente porque durante a época em que se dedicara àquilo desprendera-se de tal modo que era como se se livrasse. Apesar disso, não vinha conseguindo conviver com aquilo, e por isso precisara dar-lhe um fim. Era, talvez, um fardo pesado demais ter de lidar todos os dias com algo que deixara de ser parte sua, mas que lhe acompanhava até mesmo os movimentos da mente.
Favorecer-lhe-ia o tempo, que trataria de minguar toda e qualquer lembrança. Extremamente mais fácil esquecer-se de algo que não se vê, com que não se convive. Poderia ter tentado esquecer lidando com aquilo todos os dias? Poderia, mas não conseguiu, como se sua presença fosse um lembrete de tudo o que lhe acontecera e que de alguma forma tenderia a se repetir. Terrível seria. Assim, que ficasse enterrado o que tanto lhe perseguira e fizera mal. O que não se vê não se sente, pelo menos em parte.
Não era nada que poderia ter dividido com alguém, já bastava as pessoas que lhe passaram pela vida. Demasiado arriscado também seria isso. Então, teria de continuar assim, sem ter dividido o fato com ninguém. Desse modo também não haveria ninguém para lhe condenar as atitudes ou cobrar melhores comportamentos. Não carecia de julgamentos, sabia fazê-los por si só. Se fossem positivos, tudo bem. Se não fossem, tratava logo de esquecê-los, pois não lhe cabia autocondenar-se. Nada de espaços para culpas ou remorsos.
Haveria quem sofresse o que havia de se sofrer em seu lugar? Talvez. Oxalá. Só não queria isso para si. Nenhum remorso lhe começara a roer a alma, nem o faria. Não seria alguém diferente se não tivesse feito o que fez. Era o que era por justamente tê-lo feito.

2 comentários:

  1. Já acompanho o seu trabalho desdo ano passado. Percebe-se que você sempre esta evoluindo e melhorando o seu vocabulário!
    Esse conto passou-me que a personagem teria perdido algo doloroso para si,mas no final a personagem se mostrou até feliz...estranho...mas muito bom o texto.
    Parabéns!!!

    Alan Simon Bravo

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  2. Lindo texto.
    Adorei o modo como você descreve as coisas.
    Esse texto me fez lembrar de uma música (pra variar rs): "Eu não vou aliviar sua dor. Eu não vou acalmar sua tensão. Você vai esperar em vão. Eu não tenho nada que você queira" (Eyes On Fire)

    Eu acho que é mais ou menos por ai. Não devemos esperar que ninguém alivie nossas dores. No final das contas é só nós com a gente mesmo. E amigos para conviver com quem escolhemos ser.

    ps: É uma honra poder conviver com você!

    beijO
    S2

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