quarta-feira, 29 de junho de 2011

sepulcro

Show me forgiveness
For having lost faith in myself
And let my own interior up
To inferior forces
The shame is endless
But if soon starts forgiveness
The girl might live

(Björk, Show Me Forgiveness)

Suava. Seus cabelos estavam úmidos, colados nas têmporas. Sentia o sal que emanava de sua pele. Era um trabalho penoso, porém válido. Nos vincos de sua testa acumulavam-se gotas de suor, que lhe escorriam até os olhos, fazendo-os arder.
Aquelas paragens eram por excelência desertas, sem vivalma que lhe testemunhasse o ato inominável. Tampouco bichos havia, nem mesmo os vermes das entranhas da terra. Ao seu lado jazia, envolta em um saco preto de plástico, uma massa rígida. Quando julgou ter atingido certa profundidade, parou de escavar a terra. Havia ali diante de seus olhos a cova perfeita. Sem muito cuidado, empurrou a massa envolta no saco com os pés. Quando esta atingiu a borda da cova, deixou-se rolar até seu fundo, aconchegando-se ali. Não poderia tê-la ajeitado de forma melhor, parecia até uma criança dormindo segura em seu leito. A única diferença era que não tinha vida a massa rígida. Não mais.
Não quis olhar muito para a cova, para que não lhe ousassem aparecer os arrependimentos e lhe fosse dissuadida a ideia do sepultamento. Não se acobardara até ali, e seria ridículo que o fizesse agora. Logo estaria tudo terminado, e não devia titubear. Da mesma maneira que escavara a terra, pôs-se a encobri-la. Dessa vez, porém, o trabalho foi mais leve, e o suor de sua pele era apenas sal, seco.
Somente quando terminado o trabalho, mirou-o. Não havia como perceber que ali antes houvera uma cova. A terra úmida favorecera-o no sentido de não ter deixado nenhuma cicatriz na terra, tendo-a remexido. E também, ali não havia vegetação que não fossem esparsos e nus arbustos, sem relva.
Tomou seu rumo para casa, como se retornasse depois de uma jornada comum. Agiu pelo impulso e não controlou nenhum dos movimentos que faziam seus braços a andar. Como se há muito não se sentisse livre, seu corpo dava indícios de recém-adquirida ousadia para se movimentar involuntariamente. Não quis se toldar os próprios movimentos, e tampouco o fez com os pensamentos que lhe iam e vinham sem que tivesse tempo de assimilá-los. Tinha agora fronteiras diferentes, limites diferentes. Eram sensações novas. Por lhe parecerem indignas de observação, como se fossem perfeita e simplesmente transpassáveis, manteve inexplicável parcimônia em relação a elas, apesar da recente transgressão que se lhe impusera no espírito.
Pensou que estaria agora como se tivesse perdido uma parte de si, ou como se a tivesse decepado, e lhe ocorreu também que ainda poderia senti-la, da mesma maneira que alguém costuma sentir um membro recentemente amputado. Mas não. Não sentia falta daquilo que sepultara, provavelmente porque durante a época em que se dedicara àquilo desprendera-se de tal modo que era como se se livrasse. Apesar disso, não vinha conseguindo conviver com aquilo, e por isso precisara dar-lhe um fim. Era, talvez, um fardo pesado demais ter de lidar todos os dias com algo que deixara de ser parte sua, mas que lhe acompanhava até mesmo os movimentos da mente.
Favorecer-lhe-ia o tempo, que trataria de minguar toda e qualquer lembrança. Extremamente mais fácil esquecer-se de algo que não se vê, com que não se convive. Poderia ter tentado esquecer lidando com aquilo todos os dias? Poderia, mas não conseguiu, como se sua presença fosse um lembrete de tudo o que lhe acontecera e que de alguma forma tenderia a se repetir. Terrível seria. Assim, que ficasse enterrado o que tanto lhe perseguira e fizera mal. O que não se vê não se sente, pelo menos em parte.
Não era nada que poderia ter dividido com alguém, já bastava as pessoas que lhe passaram pela vida. Demasiado arriscado também seria isso. Então, teria de continuar assim, sem ter dividido o fato com ninguém. Desse modo também não haveria ninguém para lhe condenar as atitudes ou cobrar melhores comportamentos. Não carecia de julgamentos, sabia fazê-los por si só. Se fossem positivos, tudo bem. Se não fossem, tratava logo de esquecê-los, pois não lhe cabia autocondenar-se. Nada de espaços para culpas ou remorsos.
Haveria quem sofresse o que havia de se sofrer em seu lugar? Talvez. Oxalá. Só não queria isso para si. Nenhum remorso lhe começara a roer a alma, nem o faria. Não seria alguém diferente se não tivesse feito o que fez. Era o que era por justamente tê-lo feito.

domingo, 23 de janeiro de 2011

dualidade

Logo depois do ocaso, a poluição da cidade fazia-se notar escura e densa, contrastante com o azul celestial que escurecia. Era uma vista interessante e o momento no qual ela se esquecia de qualquer desgraça que a afligisse. Apenas agradecia a deus por poder desfrutar pelo menos daquilo.
Esperava receber alguma coisa para comer das pessoas que saíam do supermercado. Mal se importava com o buraco que se havia formado em seu estômago, mas comer era uma questão de sobrevivência, não de opção, e somente por isso esperava. Tal era o desleixo que se tinha formado em si para si própria que questões como comer, beber ou se limpar já não lhe tomavam mais tanto tempo. Aproveitaria também e escolheria um canto escondido para passar a noite, onde estenderia seu papelão e dormiria com um olho aberto e outro fechado. Nas noites de calor, era matar ou morrer.
Quando a noite caiu intensa, escolheu um canto atrás da sebe que circundava o estacionamento do supermercado, estendeu seu papelão e se sentou. Não havia recebido nada para comer de ninguém, portanto haveria de se virar com os pedaços murchos de pão que tinha guardado. Aprendera a nunca esperar muito das pessoas. Sua bolsinha estava rasgada e imunda assim como sua calça roxa, junto com sua blusa de lã que, apesar do calor, estava desfiada e emaranhada como seus cabelos louros fedidos. Ali atrás da sebe desejava não ser notada por ninguém, para que sua presença demasiado perto dos carros não incomodasse seus donos.
- Mas cadê minha mamãe? – ouviu uma voz de criança. – Eu quero ela...
- Calma que ela já vem – respondeu uma voz de homem.
- E meu papai? – choramingou a menina. – Ele ia comprar doce pra mim...
- Mas o tio vai te dar doce – ouviu ela, numa voz segura. Aprumou-se para ver melhor aquilo que só estivera escutando.
- Então cadê o doce? – viu que a menininha usava um vestido cor-de-rosa cheio dos babadinhos brancos.
- Já vou te dar o doce – o homem segurava a menina pelo pulso e quase a arrastava, porque suas perninhas não o acompanhavam. – Vem vindo.
- Você está me machucando assim, tio – queixou-se, esfregando o pulso.
- Ah, querida... – disse, ajoelhando-se até ela, pegando seu pulso nas duas mãos e beijando-o. – Desculpa o tio?
- Desculpo.
- Agora o tio tem uma coisa pra você.
- É o doce?
- O doce vem depois. Agora é outra coisa.
- O que, tio?
- Você não pode contar isso pra ninguém... – começou, e ela notou que em sua voz parecia haver apreensão. – Promete que vai ser nosso segredo?
- Prometo, tio – sussurrou em resposta. Parecia adorar segredos. – Mas e o doce? – estava ansiosa.
- Te dou o doce depois – havia impaciência em suas palavras. – Prometo também.
O homem se levantou, olhou para os lados a fim de se certificar que não havia pessoas por perto e, não notando a mendiga atrás da sebe, julgou estar ali apenas com a menina e mais ninguém. Pegou em sua mãozinha e a conduziu para sua calça, perto do zíper, onde havia volume. A menina olhou para ele, interrogativa. Ele levou o dedo aos lábios num sinal de silêncio, depois lhe sorriu da maneira mais amigável que pôde, tentando esconder toda a sua malícia. Não podia assustá-la, não naquela hora em que tudo estava caminhando bem. Devagarzinho, foi abrindo o zíper. A mão dela ainda ali, agora sobre um volume ligeiramente maior e rijo. Quando tirou o tal volume para fora, ela deu um passinho para trás. Pareceu assustada. Largou mão dali.
- Que é isso, tio? – os olhos estavam arregalados e as sobrancelhas erguidas.
Ele não respondeu, mas repetiu o ato de levar o dedo aos lábios. Com a outra mão, começou a manusear seu membro, olhando para a menina. Ela pareceu quietar-se. Pegou novamente a mão dela e então fez com que ela o manuseasse, estimulando-o. O homem pareceu desligar-se de si mesmo, quando fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Saudava momentos como aquele. Esqueceu-se completamente de que poderia ser apanhado ali. Porém, tendo recobrado sua própria atenção, ele fez a menina parar e ergueu seu rostinho para ele.
- O tio tem uma coisa que é bem melhor que doce, sabia?
- Tem, tio? – arregalou os olhos. – Onde?
- Para ganhar isso, você tem que beijar o tio.
Ela, pensando se tratar de um beijo na bochecha, ergueu os braços para alcançar o rosto dele, mas foi impedida.
- Não. Você tem que beijar outro lugar.
Ela olhou para aquilo que estivera manuseando, dúbia.
- Isso mesmo.
- Mas, tio...
- Você não quer o doce?
- Quero.
- Então...
Pegou a menina por trás da cabeça e foi um pouco para frente. Estavam muito pertos um do outro. Com um empurrãozinho, a menina inclinou-se, e o estacionamento pareceu se iluminar. Havia um carro vindo. Rapidamente o homem fechou o zíper e puxou a menina para perto de uns latões de lixo. Não se cogitava a ideia de serem vistos. Poderiam ser pegos. Contudo, quando dariam pela falta da menina? Isso não lhe passou pela cabeça. Sentou-se no chão e pôs a menina no seu colo. Carinhou seus cabelos e face. Ela era lourinha e delicada.
- Agora o tio vai te pedir uma coisa.
- Que coisa?
- Fica quietinha.
Dizendo isso, tapou a boca da menina com uma mão e derrubou-a no chão. Com a outra mão, foi levantando seu vestido, alisando suas perninhas. Ela se debatia, tentava acertá-lo com seus braços pequeninos. Ele era muito forte, ela não tinha chance. Seria melhor que parasse de se mexer e o deixasse logo meter a mão entre suas pernas. Inconscientemente, foi isso o que fez. Que escolha tinha? A calça dele ficou apertada novamente. Lutava agora com a calcinha dela. Logo sentiria o prazer pelo qual ansiava. Logo. Afastou a calcinha para o lado e sentiu a maciez de sua pele.
Não por muito tempo. A mendiga saíra de trás da sebe e corria na direção deles. Ele não percebeu coisa alguma, tão louco de excitação que estava. Ela se jogou em cima dele e o fez atingir os latões de lixo, saindo de cima da menina. Mordeu a orelha dele que tirou sangue, e tentava socá-lo com a mão que não estava a apertar-lhe a garganta. Ele era tão grandalhão, e ela tão franzina, que conseguiu se levantar e batê-la contra a parede. Ela caiu, quase esmagada, mas conseguiu dizer para a menina:
- Corre, fia!
Ele não se importava mais com a menininha, deixou-a fugir. Já tivera sua oportunidade de gozo frustrada, e agora só queria era acabar com aquela que lhe estragara o momento. Deu-lhe uns quantos chutes na barriga que ela logo cuspiu sangue. Levantou-a pela gola da blusa e socou tanto sua cara encardida e sua boca estourada que três dentes saltaram dela. Ela já havia estado em tantas outras brigas que aguentou o tranco. Ele a jogou no chão e fez chover palavrões sobre ela, como se adiantassem de algo. Ela conseguiu agarrar sua perna e a mordeu. Mordeu tanto que sentiu os músculos cedendo às forças de seus dentes. O homem berrou. Berrou ainda mais quando ela subiu a mão feito uma aranha por suas pernas e esmigalhou o que tinha no meio.
À essa altura, a menininha já estava sendo procurada há muito por seus pais e pela equipe de segurança do supermercado. Tanto o fato dela ter sido encontrada quanto o alarde da luta entre o homem e a mendiga chamaram atenção da segurança. Realmente, logo se viu, enquanto continuavam a lutar o homem e a mendiga, grande contingente de seguranças a chegarem ao local, sem falar da menininha e seus pais. Surpreendidos, o homem e a mendiga foram separados e explicações foram pedidas. Depois, ouvida também a parte da família da menina, foi contatada a polícia.
O homem foi detido por  tentativa de estupro, agravada pela pedofilia contida no ato. As mídias veicularam o ocorrido, quase corriqueiro de forma terrível e infeliz. Também surpreendente, por ter como agente solucionador uma mendiga que aos olhos de alguns não teria porque se intrometer em um assunto desses mas, paradoxalmente, fizera-o, apesar do desprezo que sentia pelas coisas... Todo e qualquer humano surpreende se quiser, se deixar aflorar o que tem de melhor e pior de si.

(Conto a partir de uma reportagem.)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

decisão

Devagarzinho, desenrolou-se dos braços fortes que lhe abraçavam enquanto dormia. Não queria acordar o homem deitado ao seu lado. Fazia tempo que não conseguia pegar novamente no sono, e seu corpo estava ficando dolorido de ficar na mesma posição. Descobriu-se dos cobertores e se sentou na cama sentindo as molas do colchão rangerem sob seus movimentos. A friagem atravessava o grosso tapete. Tateou o chão à procura das pantufas, seu acolchoado confortou-lhe os pés. Demorou um pouquinho até que a maciez esquentasse e transformasse o conforto em aconchego. Levantou-se e as molas rangeram mais uma vez. Só desejou que isso não acordasse seu companheiro, era a última coisa que queria. Durante o tempo em que estivera esperando os pés ficarem quentes dentro das pantufas, espreguiçara-se. Seus olhos já se haviam acostumado à escuridão, então não houve necessidade de acender qualquer abajur que fosse para encontrar o robe, que vestiu a fim de proteger suas costas e peito nus. Caminhou pelo quarto, tentando pôr em ordem tudo aquilo que lhe estivera martelando a cabeça enquanto não conseguia dormir. Eram tantas as coisas. Julgou-se incapaz, pela primeira vez em sua juventude, de não conseguir achar uma alternativa para seus problemas. Nem um subterfúgio que fosse. Nunca tomara nenhuma atitude radical, mas sempre dera um jeitinho de fazer as coisas se arranjarem, de um jeito ou de outro.
O homem adormecido na cama se mexeu. Teria notado sua ausência? Não. Ele dormia feito pedra, ainda mais depois do que haviam feito quando chegaram ali. Era um homem maduro e ainda viril, mas todos os seus clientes costumavam dormir bastante depois de se encontrarem. Aproximou-se da cama, pertinho do rosto do homem. Havia algumas rugas nos cantos de seus olhos cerrados. Os cabelos grisalhos lhe davam certo charme. Era um homem bonito. Gentil e bastante devotado. Não entendia por que ele nunca se casara, sendo tão bom. Não entendia também por que lhe havia escolhido para passar as noites. Noites, no começo. Logo depois vieram os jantares, as tardes... Os almoços, e o dia inteiro, noite adentro. Sempre havia um café da manhã depois. Às vezes, um final de semana. Ou uma semana de férias. Ele sabia que nunca poderia lhe ter de verdade, só por um tempo, a certo custo... Custo que ele estava sempre disposto a pagar, até mais que o combinado. Como podia o homem dispensar tanta coisa por sua causa? Tinha mesmo muito que agradecer a ele, pois era o único que lhe conseguia fazer feliz, quando todas as outras pessoas que amava lhe haviam dado as costas, sem nunca nem lhe terem estendido a mão.
Afastou-se dele, depois de puxar os cobertores até seu peito. Não queria que ficasse doente. Só conseguiria dormir depois que pensasse o bastante sobre o que lhe atormentava. Bom, o homem era uma dessas coisas. Por mais que estivessem juntos em um final de semana ou outro, sempre havia algum outro cliente na semana. Nenhum se comparava àquele deitado ali no quarto, mas eram pessoas necessárias para seu sustento financeiro, emocional e físico. Eram únicos aqueles que lhe proporcionavam segurança, ou lhe apoiavam nas escolhas. Com alguns conversava, apenas. Pagavam por isso. Havia aquele – em particular – que lhe satisfazia melhor que todos os outros. Tudo bem que seu trabalho era dar prazer, mas era muito gostoso conseguir receber prazer em troca. Desse modo, não havia aquela mecânica de sempre. O casado sempre lhe procurava, ora para conversar, ora para descarregar sexualmente toda a frustração sexual que enfrentava em casa. Sempre o ajudava, aconselhando para que tentasse manter sua família unida, pois esse era seu maior bem. De um modo geral, vivia bem com todos os seus clientes, e sabia conciliá-los bem, mesmo sendo o adormecido o que mais lhe procurava. Sua relação havia se tornado algo mais intenso que simplesmente ‘programa’. Havia ali certo companheirismo quando o homem lhe levava para passear, passar a noite em sua casa ou apenas ir ao café da esquina conversar sobre a vida. As ligações nos celulares eram frequentes. Às vezes, precisava desligar o celular quando estava com outro cliente, para que não atrapalhasse. O homem, certamente, percebia e não insistia mais. Entendia que só lhe podia ter quando pagava sua companhia, suas palavras e seu corpo. Nunca havia lhe cobrado nada ou chamado atenção para seu comportamento. Queria apenas seu bem. Queria tanto que um dia lhe propôs que fosse morar com ele. Será que ele não entendia que seu lugar era na vida? Não era a pessoa certa para ele. Não poderia nunca satisfazer as necessidades daquele homem, a não ser quando combinado. Quando combinado.
Havia também outra coisa que lhe apertava o coração sob o peito agora nu que o robe deixara descoberto por estar frouxo o nó na cintura. Sua família. Família? Não deixavam de sê-lo, apesar de não mais manterem contato durante bem uns cinco anos. Não aceitavam seu modo de ganhar a vida. Bem que tentara esconder durante certo tempo, mas sempre lhe perguntavam a origem do dinheiro com o qual contribuía em casa. Sempre mentia. Mas os pais não aceitam os filhos do modo que são? Resolveu, pois, contar a verdade. Nem sempre os pais aceitam os filhos do modo que são. Disseram que aquilo era coisa que gente decente não fazia. Fizeram com que arrumasse suas malas e fosse procurar um lugar para morar, porque gente sem-vergonha não morava debaixo daquele teto pudico. Morou um tempo na casa de amigos e teve sua vida atormentada pelos familiares que lhe ligavam no celular, exigindo satisfações ou dizendo estarem envergonhados. Depois de um tempo conseguiu um apartamento, com o dinheiro que tinha guardado e com o que ganhou. Todos os seus clientes lhe ajudaram bastante, e teriam ajudado mais, se tivesse dado abertura. Houve um que lhe convidasse para morar com ele. Mas não. Não podia estragar sua relação com eles. Eram clientes. Clientes apenas.
Olhou-se no grande e largo espelho que havia na parede defronte a cama. Seus cabelos estavam amassados no lado esquerdo, e bagunçados depois da farra. Isso lhe provocou um certo riso rouco. Tinha de arranjar um motivo para rir. Assim os problemas ficavam mais leves, de certo modo. Abriu o robe e esquadrinhou-se. Suas pernas bem torneadas tinham coxas duras e macias. Uma tatuagem que começava perto da costura da roupa de baixo e ia além dela provocava quem a olhasse, provocava os clientes, que queriam sempre saber até onde ela continuava, e o que havia perto dela. Era um trunfo. A cintura era onde eles mais gostavam de pegar, sempre num abraço protetor ou numa pegada mais caliente. O peito nu e macio parecia ser onde se encontrava toda sua energia. Os cabelos que lhe caíam nos ombros eram sedosos, cheirosos. Além de resistentes, pois adoravam puxá-lo. Orgulhava-se, seu instrumento de trabalho estava em perfeitas condições, dali irradiava o furor que encantava seus homens. Os clientes gostavam. Gostavam do seu corpo. Até quando, porém, ele duraria? Não para sempre. Nada durava para sempre. Aprendera isso com sua a vida. Vida. Que vida levaria depois que ‘tudo caísse’? Teria meios de se arranjar depois que seus clientes enjoassem do seu corpo decadente e fossem procurar alguém mais enxuto? Precisava se garantir. Morar com cliente era uma hipótese fora de cogitação. Tinha dinheiro guardado. Seria o suficiente?
Ocorreu-lhe que depois que essa sua vida acabasse, poderia tentar uma reaproximação com sua família. Não seria tarde, seria? Dali uns dez anos? Precisava deles. Sempre precisara. Seus pais já deviam estar quase de idade, já não eram novos quando nasceu. Não queria que algum deles partisse sem que pudesse se despedir. Carregar esse sentimento seria mais insuportável que permanecer sem lhes falar. Esperar dez anos era muita coisa. Gostaria mesmo era de falar logo com eles. Ocorreu-lhe a dúvida de que talvez eles continuassem irredutíveis em sua posição. Ou teria o tempo amolecido e aberto seus corações? Não achou isso possível. Era uma família muito tradicional. Se quisesse, teria era de largar essa vida, e ir com a cara limpa, cheia de coragem. Largar essa vida? Conseguiria? Ora, não haveria de fazer isso um dia? Ainda era jovem, tinha tempo para seguir um novo rumo. Pior seria se resolvesse tentar uma vida nova quando já não lhe sobrasse juventude, beleza ou inteligência, afinal, ainda não havia investido em si. Ainda haveria tempo para tudo isso, se desistisse dessa vida agora. Mas e o homem? E seus clientes? Eles que se arranjassem. Já havia vivido muito tempo em função deles. Mundo afora havia mulheres para cada um deles e, em outra hipótese, outras pessoas da vida. Precisava era pensar na sua vez, que podia ser agora, dali a dez anos ou nunca mais. Agora pouca coisa era certa, porém mais provável. Dali a dez anos tudo era incerto. Nunca mais era muito tempo. Teria de ser agora. Amarrou novamente o robe à cintura, deu uma chacoalhada nos cabelos e foi até o guarda-roupa do quarto. Sua malinha estava desfeita, com todas suas roupas nos cabides e nas gavetas. Primeiro, vestiu-se bem para o frio que estava fazendo naquele mês de junho. Depois, pegou as roupas e foi guardando tudo na malinha. No final, ainda havia espaço dentro dela, que deveria ser preenchido pela roupa que estava para lavar e passar. Elas que ficassem para trás. Seria uma vida nova, com roupas novas. Só pegara aquelas na malinha, pois não podia ficar sem se vestir. Assim que chegasse em casa, faria uma seleção com todas, dando as que sobrassem. Entregaria as chaves para o dono do apartamento. Alugaria outro, não tinha esperanças de tão cedo voltar a morar na casa de seus pais. Pegou o celular e o colocou da mesa-de-cabeceira. Não o levaria. Vida nova, celular novo. Nenhum cliente poderia saber do seu paradeiro. O dinheiro que o homem lhe havia dado pelo final de semana estava no bolso do jeans que usava. Colocou-o na mesa-de-cabeceira também. Poderia se virar com o que tinha, e não queria parecer estar aplicando golpe algum. Com o lápis-de-olho em sua bolsa, foi até o espelho e escreveu Adeus. Você foi bastante importante para mim. Não me procure, pois não me encontrará. Você não tem culpa nenhuma, mas agora acabou. Preciso viver minha vida. Quando estava para passar pela porta do quarto, olhou para trás. Ele ainda dormia, o homem que poderia ter sido o da sua vida. Poderia. Não podia ficar mais com possibilidades. Desceu as escadas e saiu da casa. Era um novo dia, com a aurora que chegava. Alguns carros passavam pela estrada enlameada.
Pediu carona para um e combinaram o destino. Foi viver sua vida.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

imaculado

O balanço do parquinho rangia de velho, sua ferrugem se mesclava com o marrom terroso do chão, contribuindo junto com o céu plúmbeo para deixar o dia já escuro ainda mais encardido. Não havia viva alma que pudesse notar o menino de cabelos negros e asseados que seguia em direção àquele parquinho decadente, tomando cuidado para que suas roupas imaculadamente limpas não fossem sujas pelo óleo vazado dos carros, nem pela lama da rua ou pelas goteiras das árvores de copas encharcadas.
Teria o parquinho só para si, principalmente o balanço, o que já era grande coisa, considerando que em dias de bom tempo já era uma grande peleja adentrar o parquinho, que diria conseguir apropriar-se de um dos brinquedos por um momento que fosse. Permitiu-se correr até o balanço, mesmo que isso significasse melar seus sapatos de lama. Escolhendo o do meio, notou que no assento havia água, mas não considerou isso um problema e apenas a limpou com as mãos, deixando ainda umas gotas esparramadas (secou-as ao se sentar nele). Suas mãos, notou também, sujaram-se com a ferrugem das correntes, mas assim que começou a balançar e experimentar aquela brisa morta no rosto, deliciando-se com o vai-vem à medida em que ia ganhando altura, pensou que aquelas sensações valiam a lama nos sapatos, o bumbum molhado e as mãos sujas. Com certeza, sua mãe entenderia que voltasse para casa mais sujo do que quando saíra, afinal, era normal que garotos se sujassem mais do que deviam.
O balanço fazia um rangido quando ia para frente (réc), e outro quando ia para trás (roic). Isso o fez se lembrar de uma cantiga, que uma vez ouvira algures, e com certa dificuldade tentou assoviá-la da melhor maneira que pôde. Não com muito sucesso, mas não era o pior som do mundo, e o único que se fazia ouvir naquela desolação de cidadezinha. Até ouvir um certo chape-chape atrás de si, seguido de uma vozearia. Não se importava com o que fosse, contanto que ali pudesse permanecer, assoviando e balançando.
- Olha lá, o bambi quer voar!
Ah, são aqueles moleques, pensou.
- E ‘tá assobiando feito um canarinho, haha!
Foi deixando o balanço diminuir seu ritmo. Boa coisa não sairia dali, e sua vontade era de voltar logo para casa. Porém, se o fizesse, seria tomado por covarde (não que nunca tivesse sido). Melhor ficar? Logo os moleques alcançaram o balanço e o cercaram. Não mais havia vai-vem algum, e o menino ficou a olhá-los bem. Eram seis. Dois ou três anos mais velhos, pelo menos dois palmos mais altos, rostos encardidos e cabelos ensebados. Sem falar do quase careca, cujas roupas estavam sujas e rotas nas barras e mangas. Reparou que uns três tinham paus nas mãos. Não havia nada que lhes recomendasse muito na opinião do menino, tampouco havia motivo para andarem daquele jeito, visto que tinham família.
- O que faz aqui, menino? – perguntou o quase careca, o chefe do bando.
- Como se dissesse respeito a você... – respondeu o menino, baixando a cabeça.
- Todo atrevidinho, hoje – continuou o quase careca. – Tu sabe que deve controlar a fuça, pra conservar os dentes.
- Ele não deve saber o que a gente fez com o da rua de baixo – zombou um dos que tinha um pedaço de pau na mão –, vai ficar um tempão com a boca fodida!
- Tua mãe que te arrumou assim, é? Te penteou e vestiu igual uma menina?
- Não foi ela – respondeu de cara amarrada.
- Ah, foi tu mesmo, né?  Quis ficar bonito, menino?
- Acho que vocês deveriam fazer o mesmo. Quem sabe assim as garotas podiam se interessar pelo que há debaixo desses trapos que vocês usam. – despejou, num momento de coragem descontrolada.
- As garotas só olham pra ti porque tu parece uma bonec...
- Tu acha mesmo que as garotas não olham pra gente? – interrompeu o quase careca. – Sabe que tua irmã ficou esfregando o rabo no meu pau, igual uma puta na festa da igreja? – disse, pegando em suas partes e arrancando urros dos comparsas.
- Minha irmã não é nada disso! E ela não faria uma coisa dessas, ainda mais com você! Seu maloqueiro... – sua voz saíra fina demais para mostrar valentia.
- Olha lá a bichinha toda nervosa defendendo a puta da irmã! – disse um fedido de cabelos louros.
- Tu é viado, moleque? Hein? – o quase careca adiantou-se pro menino, olhando-o bem nos olhos, dando-lhe um baita empurrão no ombro esquerdo. – Diz logo! – isso o fez corar de vergonha, e abaixou a cabeça.
- Quem sabe ele não bate uma pra gente! – berrou o louro fedido lá de trás. – Ele é bonitinho, pode ser nossa putinha! – enquanto eles zurravam, o menino se apavorava.
- Mas ele tem que responder minha pergunta – disse o quase careca, que agora segurava o menino com as duas mãos em seus ombros, exibindo um sorriso malicioso no rosto magro detentor de algumas cicatrizes. – Tu é viado, não é? Pode dizer... – não saía voz da garganta do menino, e ele já começara a empalidecer.
- Cara, ‘tá na cara que ele é! – os moleques trocaram olhares de assentimento, concordando no que iam fazer. – Duvido que ele não esteja querendo! – todos eles então foram fechando um círculo intimista em volta do menino e do quase careca.
- ‘Tá certo... – disse o quase careca. – Tu vai adorar o que eu tenho aqui pra ti – continuou, empurrando-o para o assento do balanço. – Primeiro tu senta aí – abriu o zíper da calça –, e agora vamo’ que já ‘tô de pau duro.
O menino não podia deixar-se submeter àquilo. À sua volta os moleques estavam todos reunidos, esperando pela hora do gozo, sinistros. Sendo todos mais velhos e mais altos, além de mais fortes, não havia como enfrentá-los no braço. Quando o quase careca foi se adiantando a ele com o pênis nas mãos, ordenando-lhe que o manuseasse, o menino realmente entendeu o que queriam dele, e se apavorou ainda mais. Aproveitou-se do fato de estarem urrando feito bicho e o quase careca estar numa espécie de jubileu com os amigos, tomou impulso no balanço e, quando ele chegou mais perto, meteu-lhe um chute no pênis que lhe vinha à frente. Nada de força, mas tudo de impulso; o que fez o antagonista cambalear para trás praguejando de dor, fazendo seus comparsas acudirem-no, quebrando assim o círculo que fazia às vezes de muralha. Sem titubear, lançou-se do balanço e se desembestou a correr, pensando em voltar para casa, acreditando estar com vantagem. Pode até tê-la tido, mas dois moleques logo estavam no seu encalço, nada dispostos a deixá-lo voltar para casa. Perseguiam-no de modo a fazê-lo entrar no bosque que circundava a cidade.
Arriscou uma olhadela para trás somente para aumentar seu desespero. Todos o seguiam agora, e do quase careca emanava um furor sem par. O chão do bosque estava ainda mais escorregadio que a lama da cidade, mas pouco se importava com obstáculos, tamanha era sua vontade de se ver seguro. Enquanto se embrenhava por uns arbustos baixos a fim de se esconder, jurou ter visto uma senhora de cabelos brancos e vestido cor-de-rosa. Passou por eles para alcançá-la, pois pensava que talvez ela o ajudasse, se visse seu desespero, mas foi só o tempo de se desembrenhar dali para volver os olhos na direção que a tinha visto, e ela sumira. Mesmo assim, continuou correndo (uma vez que havia dobrado a rota que seus perseguidores poderiam julgar reta), até chegar a uma pedreira que acabava num rio. Parou ali, agachou-se entre as pedras e esperou, rezando para que a falta de ação e barulho por sua parte acabasse por desanimar os moleques ou lhes dar a falsa ideia de que conseguira realmente fugir deles.

- Achei! Achei!
Ah, não. Era um moleque de pele clara e cabelos cor de palha, com o louro fedido, bem acima da pedreira. Dali a pouco, havia dois em cada margem, e alguns a desciam em sua direção. Então, olhou para frente e viu, numa pontezinha que cruzava o rio, a senhora que vira anteriormente. Os moleques pareciam não se ter dado conta dela, pois ela não os intimidava nem um pouco. Ele viu que a única maneira de chegar até ela seria pelo rio, estando as margens sitiadas. Foi então descendo pela pedreira e fez o que mais sensato lhe pareceu para tentar salvar sua vida: atirou-se no rio.
Enquanto se sentia trespassado pela gélida correnteza e tentava nadar na superfície, ouvia os gritos dos moleques, mais os urros do quase careca: cata ele, cata ele!. Afundou mais uma vez, engolindo uma quantidade de água fabulosa. Lembrou-se de que nunca fora um bom nadador, e chegou a se escutar pedindo socorro. Afundando cada vez mais, engolindo muita água, sentiu um frio medonho tocar-lhe a alma, vendo a luz do dia lá longe na superfície...
Até não mais sentir a água a lhe encher os pulmões. O frio acabara, ele se sentia leve como pluma, além de limpo. Ao sentir uma frescura, percebeu que chegara à superfície. Uma mão branca que vinha de cima indicava que a senhora de cabelos brancos, tão parecida com sua avó, lhe estendia a mão para que subisse na ponte. Lá se sentou, confuso. Não contava ver o corpo de um menino de 12 anos boiando no rio, ondulando na correnteza, nem em ouvir os gritos dos moleques apavorados, que apontavam para o corpo:
- Ele morreu!
- Putz, olha o que tu fez, cara!
- Eu? Eu não fiz nada! O viadinho que se jogou no rio!
- Cala a boca, seus filho’ da puta! – disse o quase careca. – Agora a gente volta pra casa e deixa isso pra lá! Faz de conta que não sabemo’ de nada!
- Boa!
- Sujou, mano! Vamo’ logo embora!
Ao deixarem o lugar, a confusão foi se desfazendo para o menino.
- Então... – quase gaguejava. – Aquele sou eu? Eu morri?
A senhora fez que sim.
- Mas por quê?
- Isso eu não posso responder.
- Mas e eles? A culpa é deles!
- Não me cabe determinar, meu rapaz.
- O que acontece agora? E minha mãe?
- Ela saberá. Não se preocupe.
- Aonde vou?
- Eu mesma não sei. Só vou te levar até um pedaço.
- Me promete uma coisa? Promete que vai ser bem má na hora deles?
- Não creio que isso dependa de mim.
- Foram tão maus comigo...
- Acho que posso assustá-los – respondeu, dúbia.
- Sério que pode?
- Talvez.
- Olhando bem, a senhora não se parece tanto com minha avó. Só lembra – disse, fitando-a. – Por quê?
- Pra que você não tivesse medo – e quase sorriu. – Agora vamos?
- Posso te pegar a mão? – pediu. – Tenho medo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

o templo da colina

O Templo da Colina se localizava na colina mais alta do vale mais elevado da região. O automóvel avançava com dificuldade pelos caminhos nevoentos, molhados e tortuosos que levavam até ele. Muitas pessoas costumavam enfrentavam a cansativa e aflitiva viagem até lá a fim de fazer suas promessas. Todos os quatro dentro do carro haviam caído da cama antes do nascer do sol, mas três deles estavam preocupados demais para uma tirada de pestana sequer. Apenas Salomé dormia, encostada ao ombro de Miguel. Por seu estado muito fragilizado de saúde e mente, não aguentara acordada a viagem. O pai somava a cautela com a estrada às preocupações que já lhe pesavam tanto. Não falava, nem com a mãe, que mordia o nó do dedo indicador direito, aflita. Uma ida a um templo pagão não tem cabimento, pensava ela, mas era a vontade da filha, devia ser respeitada. Miguel, não menos preocupado que seu pai e sua mãe, tentava estalar os dedos há muito e muitas vezes estalados, olhava para a direita, ao leste, onde o preguiçoso sol começava sua tentativa de se levantar de seu leito.
Com um sorriso gentil, Miguel começou a acordar a irmã.
— É, chegamos — anunciou o pai.
Ela despertou.
— Vamos, querida, arrume-se — disse a mãe.
O sol mal nascera; uma névoa densa e branca pairava pelo lugar, delimitando o campo de visão das pessoas. Miguel ajudou Salomé a sair do carro: a falta de calor e o sereno mantinham tudo bem úmido e escorregadio, e a doença a deixara bastante debilitada. Precisava sempre de apoio e andava devagar, a passos lentos e incertos.
Passaram pelo arco de pedra encardida e pelas grades espiraladas, que marcava a entrada; e foi a caminho da fonte que vislumbraram pela primeira vez o Templo da Colina. Este erguia-se como um refúgio em meio à névoa fantasmagórica. Miguel ia com Salomé à frente, amparando-a com o braço direito; a mãe e o pai seguiam atrás, incomodados.
A fonte era funda, alta e larga. O musgo que a cobria, pegajoso. Sua água exalava um bálsamo confortador, que os envolvia em aconchego, enchia-lhe os corações de esperança e os encorajava. O pai e a mãe fitaram o casarão adiante, admirados e cautelosos.
— Vamos pegar os cálices — disse a Mãe, de má vontade.
Salomé sentia o casarão devorador, atraindo-a. Virou-se para Miguel, procurando mais segurança nos braços dele e no calor de seu corpo. O irmão era seu refúgio.
A mãe e o pai voltaram com quatro cálices nas mãos. Distribuíram-nos, encheram-nos na água da misteriosa fonte, seguindo, depois, para o Templo que, apesar do dia de frio e escuridão, estava maravilhosamente iluminado, com candelabros bruxuleantes à sua volta. Através de seus vitrais, via-se a luz dourada das velas. Ao cruzarem as portas de ferro, um sacerdote deu-lhes uma grossa vela num castiçal gasto. O esplendoroso interior do Templo era um enorme salão oval de piso empedrado, grossas colunas esculpidas, cujas bases eram altares pejados de velas e cálices, abóbadas de ogivas altas, trabalhadas, quase sem fim, e paredes queimadas com archotes flamejantes. Serpenteando pelas abóbadas, uma cobra fumacenta e negra espreitava.
Dirigiram-se até o altar onde ficava a escultura da deusa da cura na coluna: semblante calmo, corpo resistente; com a mão direita segurava um cálice e, com a esquerda, um bastão com uma serpente enroscada. Fitava-os com olhos de pedra, penetrando a alma do mais enfermo.
— Venha, Salomé — disse Miguel, adiantando-se para começarem a oferenda.
Ele explicou à irmã e aos pais como proceder. Terminado o ritual, o pai e a mãe lançaram um derradeiro olhar de menosprezo à deusa e se voltaram para ir embora. A fumaça negra vinha pelas abóbadas na direção de Salomé e Miguel, que se detiveram em frente ao altar. Ao invés do flautista hipnotizar a cobra, fora a cobra quem hipnotizara Salomé, que a fitava, petrificada; seu irmão não se dera conta até que ela disparou até a garota, atingindo-a no peito, fazendo-a cair. Miguel acudiu-a, pegou-a nos braços e tentou erguê-la, em vão. Ela havia desmoronado, para depois se reerguer em outro ser: maligno e forte. Abriu os olhos rubros como brasa, mirando os de Miguel. Empurrou-o com força incomum e levantou-se rapidamente. Um ser ereto, forte e ameaçador, cujos cabelos pareciam cobras, os olhos, o inferno, a pele, mais alva do que neve, com maior potência incendiária, chegou mais perto de Miguel.
— Tu és fraco, frouxo — disse numa voz forte e opressora. — Omisso e covarde! Pecaminoso! O que diria sua família se soubesse o sentimento que nutre por irmã? Se soubessem das tantas noites em que você a desejou ardentemente? Acha que mesmo ela compreenderia você? Você fez a pior coisa que um irmão poderia fazer... Querer tomar a irmã!
O Templo todo assistia à cena. Estariam todos vendo o que viam? O rapaz cerrou os punhos, inspirou como se fosse mergulhar no mais profundo dos mares e investiu contra o ser, que conseguiu ser mais ágil, e agarrou um castiçal e brandiu-o contra Miguel. A vela foi arremessada em sua direção e a pequena chama e a parafina derretida queimaram-no. Aproveitando-se de sua distração, o ser avançou contra Miguel e cravou-lhe o castiçal no pescoço, lutando contra as cartilagens e seu forte corpo, que se debatia.
O rapaz gemeu e conseguiu desvencilhar-se do corpo possuído de Salomé. Sangrava terrivelmente. Do alto, o ser encarava-o fixamente, cheio de malícia, assistindo à sua agonia. De sua boca saíram as palavras não se deve brincar desse jeito com a própria irmã. Depois disso, gargalhou desdenhosamente.
— Olhe só para ti...
Miguel arquejava, e o corpo de Salomé desabou. Ela permaneceu caída por um tempo, mas logo recuperou os sentidos e, depois de uma breve desorientação, levantou os olhos para o irmão e viu sua desgraça. Miguel arrastou-se até ela e minha irmã saiu entre engasgos. Ela nunca entenderia o que acontecera. Seu irmão foi parando de arquejar e se acalmou, entregando-se à Inevitável. Os olhos permaneceram vidrados em Salomé, contendo toda a verdade que ela era incapaz de ler.
Um fenômeno como aquele nunca fora presenciado por alguém até aquele dia e deveria ser abafado. Os pais, com certeza, não fariam nada que pudesse prejudicar a filha, e tomaram o ocorrido como obra do demo, do sobrenatural. O filho teria de ser esquecido, juntamente com as acusações a seu respeito. A sombra que possuíra Salomé havia partido. Havia partido com eles. Na verdade, havia partido com ela. Isto passou despercebido.